LITURGIA E MÚSICA SACRA

CARD. RATZINGER

Conferência proferida na abertura do VIII Congresso de Música Sacra, em Roma, 17 Nov 1985.

 

EXCERTO

 

3. O MODELO ANTROPOLÓGICO DA LITURGIA ECLESIAL

 

Duas palavras da Escritura se apresentam como chaves para responder à nossa pergunta. Paulo gravou o termo logiké latreía (Rom 12, 1) que dificilmente se pode traduzir numa das nossas línguas modernas porque lhes falta um equivalente real do termo Logos. «Serviço litúrgico determinado pelo Espírito», poderemos dizer, remetendo ainda para as palavras de Jesus relativas à adoração em espírito e verdade (Jo 4, 23). Mas também se poderia traduzir «veneração de Deus plasmada pela Palavra» e, nesse caso, é natural que o termo «Palavra» na sua acepção bíblica (e também no mundo grego) é mais do que simples linguagem: é uma realidade criadora. E, todavia, é também mais do que uma simples ideia e do que um mero espírito: é o Espírito que se exprime, que se comunica. Desta realidade de fundo derivaram em cada época, como princípios preliminares, a referência à Palavra, a racionalidade, a compreensibilidade e a sobriedade da liturgia cristã e da música litúrgica. Seria uma interpretação restritiva e falsa, se se quisesse compreender com isto uma rígida referência ao texto de toda a música litúrgica e se se quisesse declarar a compreensibilidade do texto como seu pressuposto geral. A Palavra, em sentido bíblico, é de facto mais do que um «texto», e a compreensão é mais ampla e profunda do que a banal compreensibilidade de quanto se vê logo com clareza, de quanto se pode sistematizar forçadamente a racionalidade mais genérica. É certo, porém, que a música que serve a adoração «em espírito e verdade» não pode ser êxtase rítmica, nem sugestão sensual ou atordoamento, nem sentimentalismo subjectivo, nem entretenimento superficial, mas antes está associada a um anúncio, a uma afirmação espiritual e racional, no sentido mais nobre. Com outras palavras: é certo, portanto, que do seu íntimo a música deve fundamentalmente corresponder a esta «Palavra», melhor, deve pôr-se ao seu serviço.

Com isto somos já levados para um outro texto bíblico, o fundamental para o problema do culto. Este texto diz-nos mais precisamente que coisa significa a «palavra» e que relação tem connosco. Estou a aludir à passagem do prólogo joanino: «E o Verbo Se fez carne e veio habitar no meio de nós e nós vimos a sua glória» (Jo 1, 14). Falando da «Palavra» a que se refere o serviço litúrgico cristão não se trata em primeiro lugar de um texto, mas de uma realidade viva: de um Deus, que é sentido que se comunica tornando-se Ele próprio homem. Esta incarnação é agora a tenda sagrada, ponto de referência de todo o culto, que é um contemplar a glória de Deus e dar-Lhe honra. Estas asserções do prólogo de João não são, porém, ainda tudo. Elas têm sido mal entendidas se lidas em separado dos discursos de despedida em que Jesus diz aos seus: «Eu vou e voltarei para junto de vós. Se vou, venho de novo. É bem que eu vá, porque, se eu não for, não virá a vós o Consolador» (Jo 14, 2 s; 14, 18 s; 16, 5 ss. etc.). A incarnação é apenas a primeira parte do movimento. Ela adquire pleno sentido e torna-se definitiva somente na cruz e na ressurreição: da cruz o Senhor atrai tudo a Si e leva a carne, isto é, o homem, e todo o mundo criado para a eternidade de Deus.

 

A música litúrgica resulta da exigência e da dinâmica da incarnação da Palavra: Palavra feita carne e carne feita Palavra

A liturgia está submetida a esta trajectória e este movimento é, por assim dizer, o texto fundamental a que se refere toda a música litúrgica, como sua medida. A música litúrgica é uma consequência resultante da exigência e da dinâmica de incarnação da Palava, porque esta significa que também entre nós a Palava não pode ser simples falar. O modo central com que a incarnação continua a operar são em primeiro lugar os próprios sinais sacramentais. Mas eles acabam por ficar privados de um contexto vital, se não estiverem imersos numa liturgia que, na sua totalidade, siga esta expansão da Palavra na corporalidade e na esfera de todos os nossos sentidos. Daqui deriva, ao contrário dos tipos de culto judaico e islâmico, o direito, ou melhor, a necessidade de usar imagens. E daqui vem também a necessidade de não perder de vista as esferas mais profundas do compreender e do responder que se revelam na música. A fé que se torna música faz parte do processo da incarnação da Palavra.

Mas este tornar-se música é contemporaneamente unido, de modo totalmente único, àquela transformação interior do acontecimento da incarnação a que há pouco procurava acenar: Sobre a cruz e na ressurreição a incarnação da Palavra torna-se carne feita Palavra. Ambas se compenetram. A incarnação se retrata; torna-se definitiva somente no momento em que o movimento, por assim dizer, se inverte: a própria carne é «feita logos», mas precisamente este tornar-se Palavra da carne cria uma nova unidade de toda a realidade que Deus tem em tal conta que a pagou com a cruz do Filho. Tornar-se música da Palavra é por um lado incarnação; é trazer a si forças pré-racionais e meta-racionais, que são também tornadas sensíveis; é trazer a si o som escondido da criação, descobrir o canto que repousa no fundo das coisas. Mas assim, tornar-se música é já também a viragem do movimento: não é apenas a incarnação da Palavra, mas ao mesmo tempo espiritualização da carne. A madeira e o metal tornam-se som, o inconsciente e o indefinido torna-se sonoridade ordenada plena de significado. Alternam-se uma corporização que é espiritualização e uma espiritualização que é corporização. A corporização cristã é sempre também espiritualização e a espiritualização cristã é corporização que penetra no corpo do Logos incarnado.

 

4. AS CONSEQUÊNCIAS PARA A MÚSICA LITÚGICA

 

a) Questões de princípio

Enquanto se realiza na Música esta complementação de ambos os movimentos, ela serve na medida máxima e de maneira insubstituível àquele êxodo interior que a Liturgia sempre pretende ser. Isso significa que a conformidade da Música litúrgica é medida com base na sua correspondência a esta forma base antropológica e teológica. Uma tal afirmação à primeira vista, parece estar distante da concreta realidade musical. Porém, torna-se subitamente concreta se observamos os modelos opostos de música para o culto, indicados por mim pouco antes.

 

Tipo dionisíaco de religião e sua música. Música Rock e Pop

Pensemos por momentos no tipo dionisíaco de religião e sua música, que Platão examinou a partir do seu ponto de vista religioso e filosófico. Em não poucas formas de religião a música é dirigida ao delírio, ao êxtase. A superação do limite da condição humana que a fome de infinito, própria do homem, procura, deve ser atingida por frenesim sagrado, de delírio do ritmo e dos instrumentos. Tal música destrói os limites da individualidade e da personalidade; o homem nela se liberta do peso da consciência. Música passa a ser êxtase, libertação do Ego, união com o universo. O retorno profanado deste tipo encontramo-lo hoje na música Rock e Pop, cujos festivais são um anti-culto na mesma direcção: prazer na destruição, abolição das barreiras do dia a dia, ilusão de redenção na libertação do Ego, no êxtase furioso do ruído e da multidão. Trata-se de práticas de redenção, semelhantes à droga e fundamentalmente opostas à concepção de Redenção da fé cristã. Assim, é consequência lógica que aumentem nesta área, hoje, cada vez mais cultos e músicas satánicas, cujo poder perigoso na intencionada destruição e dissolução da pessoa não foi ainda suficientemente tomado a sério.

O debate que Platão instituiu entre música dionisíaca e apolínica não é o nosso, porque Apolo não é Cristo. Mas a pergunta que ele levantou interessa-nos de forma muito significativa. Música tornou-se, hoje, uma forma que, uma geração antes, nem teríamos podido imaginar, um veículo decisivo de uma anti-religião e um palco de divisão dos espíritos. Porque a música Rock procura a redenção no caminho da libertação da personalidade e da sua responsabilidade, enquadra-se, de um lado, exactamente nas ideias anárquicas de Liberdade que hoje dominam no Ocidente mais abertamente do que no Oriente, mas justamente por isso é diametralmente oposta à ideia cristã sobre redenção e liberdade; é a sua verdadeira contradição. Não por motivos estéticos, não por insistência conservadora, não por imobilidade histórica, mas por uma questão de princípio deve a música deste tipo ser excluída da Igreja.

Poderíamos continuar a concretizar a nossa pergunta, analisando a base antropológica dos variados tipos de música. Há música de agitação, que anima o homem para diferentes finalidades colectivas. Há música sensual, que leva o homem ao erótico e à procura de outras satisfações sensuais. Há música só para entretenimento, que não pretende dizer nada, mas deseja apenas interromper o peso do silêncio. Há música racionalista, na qual os sons apenas servem a construções racionais, mas não alcança uma penetração verdadeira do espírito e dos sentidos. Certos cânticos inconsistentes, construídos sobre textos catequéticos, certos cânticos modernos construídos em comissões teriam aqui o seu lugar. A música que corresponde ao culto divino d'Aquele que se fez homem e foi elevado na cruz, vive de uma síntese maior, mais extensa de espírito, intuição e som perceptível. Pode-se dizer que a música ocidental, desde o canto gregoriano passando pela música das catedrais e da grande polifonia, pela música da Renascença e do Barroco até Bruckner e ainda para além dele, vem da riqueza interior desta síntese e desenvolveu uma plêiade de possibilidades. Esta grandeza só existe aqui, porque pôde crescer unicamente do fundamento antropológico que unia espiritual e profano numa última unidade humana. E ela se dissolve na medida em que desparece esta antropologia. A grandeza desta música é para mim a verificação mais imediata e evidente da imagem cristã do homem e da fé cristã da redenção que nos oferece a história. Quem realmente é tocado por ela, sabe, no seu íntimo, que a fé é verdadeira, mesmo que necessite ainda de muitos passos para realizar esta intuição com inteligência e vontade.

 

Música Litúrgica: integração dos sentidos e do espírito

Isso significa que a música litúrgica deve ser dirigida para aquela integração do ser humano que se nos apresenta na realidade de fé da incarnação. Redenção como esta é mais laboriosa que a do delírio. Mas este esforço é o esforço da própria verdade. Ele deve, de um lado, integrar os sentidos no íntimo do espírito; deve corresponder ao impulso do "sursum corda". Porém ela não deseja pura espiritualização, mas integração do sentido e do espírito, ao ponto de ambos entrelaçados se tornarem pessoa. Não rebaixa o espírito, se ele aceita em si os sentidos; ao contrário, isso traz-lhe toda a riqueza da criação. E não torna menos reais, os sentidos serem penetrados pelo espírito; ao contrário, somente deste modo podem participar da sua dimensão de infinito. Todo o prazer dos sentidos é estritamente limitado e não pode ser aumentado infinitamente, porque o acto dos sentidos não pode ultrapassar uma determinada medida. Quem espera dele a Redenção, será decepcionado, "frustrado" como se diria hoje. Porém, pela integração no espírito os sentidos adquirem uma nova profundidade e alcançam o infinito numa aventura espiritual. Somente aí eles se realizam totalmente. Mas isso pressupõe que o espírito não se feche em si mesmo. A música da fé procura no "Sursum corda" a integração do homem, contudo, não encontra esta integração em si mesma, mas somente na superação, no íntimo da Palavra incarnada. Música Sacra que se encontre neste conjunto de movimentos torna-se purificação do homem, a sua ascensão.

 

Música Litúrgica: participação na tradição

Porém, não esqueçamos: esta música não é obra dum momento; é participação numa história e supõe a comunhão do indivíduo singular com as intuições fundamentais desta história. Assim se expressa justamente nela a inserção na história da fé: serem todos membros do Corpo de Cristo. Ela deixa alegria, uma forma mais elevada de êxtase que não apaga a pessoa, mas a une e ao mesmo tempo a liberta. Ela nos deixa pressentir que é liberdade que não destrói, mas une e purifica.

 

b) Observações a respeito da situação actual

Surge a pergunta para o músico: como se faz isso? No fundo, grandes obras de Música Sacra só podem ser doadas, porque está em jogo a superação do próprio ser, que não pode ser efectuada só pelo homem, enquanto o embalo dos sentidos pode ser feito segundo os conhecidos mecanismos do delírio. O 'fazer' acaba onde começa o que é realmente grande. São estas fronteiras que precisamos, antes de tudo, ver e reconhecer. Neste sentido, está no início da Música Sacra necessariamente a reverência, a aceitação, a humildade pronta a servir na participação naquilo que de verdadeiramente grande já se realizou. Somente quem vive pelo menos basicamente da íntima estrutura desta imagem do homem, é capaz de criar a música que lhe corresponde.

 

Música litúrgica ao serviço da Palavra, na linha da tradição musical da Igreja

Mais dois indicadores do caminho foram erguidos pela Igreja. A música litúrgica precisa de corresponder no seu carácter íntimo às exigências dos grandes textos litúrgicos: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei. Isso não significa que ela só pode ser música para o texto, já o disse. Mas ela encontra na direcção interna destes textos a indicação do caminho para sua própria expressão. O segundo indicador aponta para o canto gregoriano e Palestrina. Esta referência não significa que toda música da Igreja deva ser imitação servil desta música. Neste ponto houve, de facto, interpretações estreitas na renovação da Música Sacra no século passado e mesmo nos documentos pontifícios baseados nela. Bem entendido, afirma-se com isso simplesmente que se trata de modelos que podem orientar; porém, o que pode surgir pelo criativo aproveitamento de tal orientação, não pode ser fixado de antemão.

 

Resta uma dupla pergunta: pode-se, humanamente falando, esperar que neste campo ainda estejam abertas possibilidades criativas? E como se pode realizar isso? A primeira pergunta é relativamente fácil de responder: porque, se esta visão humana é inesgotável em contraste com qualquer outra, então abrem-se também à afirmação artística sempre novas possibilidades e tanto mais, quanta mais vivamente ela caracteriza o espirito de uma época. Porém, nisso aparece a dificuldade da segunda pergunta. No nosso tempo desaparece em larga escala a fé como força publicamente caracterizante. Como pode tornar-se criativa? Não é ela em toda a parte marginalizada como simples sub-cultura? A isso é preciso dizer que nos encontramos, ao que tudo indica, diante de um novo florescimento da fé na Africa, Ásia e América Latina, podendo daí surgir novos elementos culturais. Mas também no mundo ocidental não há que temer a palavra "subcultura". Na crise cultural que vivemos, uma nova purificação e unificação cultural só pode irromper em ilhas de concentração espiritual. Onde em comunidades vivas se apresentam novos despertadores da fé, mostra, claramente, como se forma ali novamente cultura cristã; como a experiência comunitária inspira e abre novos caminhos que antes não enxergávamos. De resto, apontou com muita razão J. F. Doppelbauer que a música litúrgica tem, frequentemente, e não por acaso, o carácter de obra tardia, supondo amadurecimentos precedentes. Nisso é importante que existam os prelúdios da piedade popular e sua música, assim como a música religiosa em sentido mais amplo, que sempre deve estar em intercâmbio frutuoso com a música litúrgica: por um lado são por ela fecundadas e purificadas, mas elas preparam por outro lado novas formas de música religiosa. De suas formas mais livres pode amadurecer o que poderá entrar no património da liturgia de toda a Igreja. Aqui está também o campo onde o grupo pode experimentar a sua criatividade, na esperança de brotar disso algo que mais tarde pode pertencer ao todo.

 

Observação final: Liturgia, Música, Cosmos

No final das minhas considerações desejo colocar uma palavra bonita de Mahatma Gandhi que encontrei, há pouco, num calendário.

Gandhi aponta os três espaços vitais do Cosmos e mostra como cada um destes espaços vitais oferece um modo especial de existência. No mar vivem os peixes — e são mudos. Os animais na terra gritam; mas os pássaros, cujo espaço vital é o céu, cantam. Ao mar é próprio o silêncio, à terra o grito, ao céu o canto. O homem, porém, participa de todos três: tem em si a profundidade do mar, o peso da terra e a altitude do céu, e por isso lhe pertencem também todas as três qualidades: o silêncio, o grito e o canto. Hoje — desejo acrescentar — vemos que ao homem, privado de transcendência, só resta o grito, porque só deseja ser terra e tenta transformar também o céu e a profundidade do mar em terra sua. A verdadeira liturgia, a liturgia da comunhão dos santos, devolve-lhe o seu carácter total. Ensina-lhe novamente o silêncio e o canto, abrindo-lhe a profundidade do mar e ensinando-o a voar, como anjo; na elevação dos corações faz soar novamente nele aquele cântico que nele estava como que adormecido. Sim, até podemos dizer que a verdadeira liturgia se reconhece precisamente pelo facto de nos libertar do agir comum e de nos restituir a profundidade e a altura, o silêncio e o canto. A verdadeira liturgia reconhece-se no seu carácter cósmico, não grupal. Ela canta com os anjos. Ela guarda silêncio com a profundidade do universo em expectativa. E, assim, ela redime a terra.

CARD. JOSEPH RATZINGER

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